A entrevista perdida da dama do jazz

by - 8/15/2018

Foto: René Cabrales

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PORTO ALEGRE, RS – Ivone Pacheco nasceu em Porto Alegre (RS). Após a infância e a adolescência vividas ao redor do Hotel Metrópole, de propriedade do pai, no Centro da capital gaúcha, dedicou a vida adulta ao casamento, aos filhos e à carreira como professora na rede estadual do Rio Grande do Sul.

Ou quase isso.

No começo dos anos 80, Ivone decidiu, como em uma canção de Charles Mingus, fazer uma parada brusca, para voltar com tudo logo a seguir. Em 1982, iniciou um lendário clube de jazz no porão de sua casa, no bairro Petrópolis – o Take Five –, que mudou para sempre sua trajetória.

Nesta entrevista, concedida há 10 anos para a revista Panvel Sempre Bem, em uma pauta que deveria focar em saúde e bem-estar para pessoas acima de 60 anos, Ivone abriu seu porão e revelou histórias e impressões sobre o mundo que foram pouco aproveitadas na matéria original, mas que não poderiam ficar restritas ao arquivo pessoal de um jornalista.

Pela primeira vez, a versão completa desta conversa é publicada, extraída do arquivo de áudio original em que foi gravada, em uma manhã de dezembro de 2008, no famoso porão onde ocorrem, até hoje, as sessões de jazz do Take Five.

No bate-papo, Ivone revelou as ideias de uma mulher que vive à frente do seu tempo, mas que também acredita em instituições tradicionais. “Para mim, um homem e uma mulher morarem juntos, é casamento. E casamento tem que ser na igreja e no cartório. Quer dizer, eu sou careta, mas pra música eu sou louca. É só ali que eu me liberto. Eu continuo sendo aquela menina educada em colégio de freira”, confidenciou.

Mais do que uma mãe, uma esposa ou uma professora, no entanto, Ivone sempre se viu como artista. “O artista, por ser muito sentimental, ele sofre mais. Eu vejo a vida por outro prisma. Eu vejo pelo lado espiritual”.

Boa leitura.

***

LT - A senhora desde criança teve contato com a música. Conte um pouco sobre como foi esse começo.

Ivone Pacheco – Com quatro anos, eu tocava piano sozinha. Eu me criei em um hotel, do qual meu pai era dono. E, com oito anos, eu comecei a ter aula particular. Naquele tempo, a professora ia em casa. No começo, eu brincava, tentava tirar músicas sozinha. E aí, com oito anos, a professora veio me dar aulas. Uma senhora um dia me ouviu tocando e falou para minha mãe, “olha, essa menina tem que aprender música, ela tem ouvido”. E aí eu comecei com aulas particulares.

Isso foi, foi, foi... Eu cheguei até o oitavo ano. Estudei música clássica, erudita. Mas eu não gostava daquilo. Eu assistia filmes americanos e me entusiasmei pelo jazz desde criança. Com 12 anos, eu já queria fazer harmonia jazzística, e a professora me batia nas mãos, porque ela não admitia aquilo. Eu tinha que tocar Chopin, Beethoven, Mozart, Bach. Estudei até o oitavo ano. Com a morte da minha mãe, eu interrompi os estudos.

Depois, retomei um pouco, [nota do editor: nos anos 70, já casada e com filhos, Ivone estudou no Liceu Musical Palestrina, antiga escola de música de Porto Alegre, que encerrou as atividades no ano 2000] mas toda moça tinha que casar. O homem tinha que fazer o serviço militar e a mulher tinha que casar e ter filhos. E o meu pai, de origem italiana, começou a perguntar... Ele queria se livrar das filhas, eu acho, né? Para poder se casar também. Só que ele não casou.

A minha irmã também tocava violino e cantava. Isso estava na raiz da família – na Itália já tínhamos uma cantora na família. E a minha mãe também cantava em casa. Trechos de óperas, cançonetas italianas. Mas aí, eu interrompi e começou aquela ideia, “tem que casar, tem que casar, não adianta tocar piano”. O meu pai não queria que a gente fosse artista. Então, eu casei, já com 27 anos. Naquele tempo se costumava casar virgem, né? Então, tu vês o tempo que a mulher perdia com namoro, noivado e casamento. Bom, aí, em seguida vieram os filhos. Eu tenho três filhos, duas moças e um rapaz.

LT - O clube de jazz já tem 26 anos [nota do editor: atualmente o clube já tem 36 anos]. Como ele surgiu na sua vida?

Ivone Pacheco – É, o clube já vai fazer 27 anos. Eu fui descoberta por um jovem chamado Marcos Ungaretti. Ele é compositor e, na época, estava na colônia de férias da UFRGS, tocando num piano velho. Eu sentei depois e fui tocar um pouco. Aí ele disse assim: “a senhora toca jazz”. Eu nem sabia que eu tocava jazz.

Ele achou meu estilo interessante, fez amizade comigo, me levou para conhecer o estúdio da banda dele, o Grupo Raiar. Me levou para conhecer a família dele. E me convidou para ir pro Teatro Renascença, onde ele deu um show com a banda dele. Aí, ele vinha aqui tocar comigo, mas o piano tava na sala tradicional, lá de cima. Aí deu uma “descambada” na família quando a coroa inventou de baixar o piano e fazer o clube de jazz aqui embaixo.

Eu tinha uns quarenta e poucos anos, quase 50 – é a hora em que a mulher dá uma virada, sabe? Eu já tava cheia daquilo de marido, filhos, prisão. O casamento pra mim foi uma prisão. E eu era professora no Estado também.

A minha irmã falou pra mim, “tu vais sair de casa”. Como assim, sair de casa? “Tu vais trabalhar fora e estudar fora, já que tens o piano tu vais tirar Educação Musical, eu pago a faculdade pra ti, e tu cai fora de casa, porque tu tá desatualizada, só envolvida com comida, casa e criança”.

Aprendi a tocar acordeão, que o gaúcho chama de gaita. No nosso sangue italiano tem música. A minha irmã estudou violino, cantava sem ter aula com professora particular. Eu, com o tempo, comecei a cantar música francesa. O pessoal gostou muito. Eu faço música francesa e canto, é um outro trabalho. Mas tem um carro-chefe que é o piano, e é o jazz.

Afinal, eu disse, vou abrir um clube de jazz. “Onde?”, perguntou o Marcos. “No meu porão”, eu respondi. Aí veio ele e outro rapaz, o Sérgio Jaeger, que também me deu muita força. Aí começaram a me levar pra noite, pra conhecer bares onde tocavam. Se tinha piano, eu dava canja. Aí eu comecei a ir pra noite. E os filhos, naquela fase da adolescência, apavorados. “A mãe enlouqueceu, os magros do Bom Fim tomaram conta da nossa casa!”. Começou assim. Isso foi em mil novecentos e oitenta e poucos [nota do editor: o Take Five começou em 1982].

Uma vez tinha 300 pessoas aqui. Toda a juventude. Aí os coroas tomaram conta, porque os jovens chamavam os pais e os tios que tinham abandonado a música, e eles voltaram a tocar.

LT – E a senhora ganhava algum dinheiro com isso?

Ivone Pacheco – O clube sempre teve entrada franca. Nunca cobrei nada de ninguém. Mas ele também sempre foi meio secreto, porque senão vem muita gente. Uma vez nós fechamos por três meses, porque tinha 200 pessoas, tinha moto, tinha carro, gente que vinha a pé... As pessoas começavam a chamar as outras. Os coroas foram tomando conta. “A tia Ivone, ela mora num porão”, a gurizada dizia. Eles achavam que eu morava no porão, que eu era uma velha meio louca que vivia num porão. Aí, depois, queriam que eu fumasse maconha, e eu respondia, “não, não quero saber dessa coisa.”

LT – Como era essa turma na época que começou o clube de jazz?

Ivone Pacheco – Eles usavam aquelas calças jeans boca-de-sino, largas. E as gurias com aquelas batas indianas. Aí eu passei a me vestir como hippie. Eu não entrei na maconha, mas eu adorei aquela vestimenta hippie, aquela coisa liberta. Uma coisa estranha, bem indiana. Porto Alegre estava forrado disso. O movimento era no Bom Fim, mas eles subiram para cá e vinham tocar. Tocavam bateria.

Na primeira sessão tinham 25, depois já aumentou. Foi aumentando. E eu fazia toda semana. Aí eu comecei a cansar, e a vizinhança começou a reclamar, né? Porque era três, quatro da manhã, e eles queriam continuar tocando. Era sempre aos sábados. Agora eu faço três sessões do clube só por ano, porque eu cansei.

LT – A senhora também tocou muito fora do Brasil. Como foram essas experiências?

Ivone Pacheco – Mais para o fim dos anos 80, eu toquei nas ruas em Nova Orleans, em Nova York e em Paris. Fui fazer pesquisa de jazz. Fui primeiro com a minha irmã, depois com a minha filha. E em Paris eu ganhava moedas do mundo inteiro.

Toquei muito em Brasília, no interior do Rio Grande do Sul, em São Paulo, no Rio. Toquei em Porto Seguro. Lancei um CD só, até tenho que fazer mais. Eu vendi muito CD. A experiência de Nova Orleans foi muito boa, porque eu conversava em espanhol com os músicos de lá. Eu não falo inglês. Falo italiano, francês, espanhol. Eu não gosto muito da língua inglesa.

Lembro também que toquei numa travessia de Nápoles a Capri (Itália) num naviozinho. E comemorei meu aniversário de 76 anos em Atenas (Grécia), então toquei num navio grande em que velejamos na Grécia, agora há pouco.

Mas eu nunca tive um promoter, alguém que pudesse me ajudar a conseguir shows. Eu tinha a secretária eletrônica, que era a minha “empresária”. As pessoas deixavam os recados. Mas agora ela estragou.

Toquei muito em Pelotas, também.

LT – É mesmo? Eu sou de Pelotas.

Ivone Pacheco – Ah, tu és de Pelotas? Eu toquei no Sete de Abril – três vezes por ano me chamavam. E eu ficava no Hotel Manta. E tocava num bar, um bar que estava estourando na cidade, eu acho que tu era muito pequeno, não deve saber...

Também toquei na Argentina, no Chile. Cada viagem que eu fazia, eu dava uma canja e já me contratavam. Só que eu não ficava muito tempo. Toquei muito em happy hours em Brasília, em hotéis e restaurantes, no Feitiço Mineiro. A Cida Moreira que me indicou para o restaurante. Então, eu não posso me queixar.

LT – Conte um pouco mais sobre essa experiência que, como a senhora mesmo fala, foi de “libertação”: de que forma a relação com a música se consolidou na sua vida?

Ivone Pacheco – Toco piano, acordeão, escaleta, teclado e castanhola. A gente, quando é solteira, aprende muita coisa. Depois, a vida se vira para o marido e os filhos. Então, eu abracei a música depois que eles estavam crescidos, e pelo clube de jazz, por causa do Marcos. Aí, eu abracei direto, até hoje, e não renuncio.

Eu precisava abraçar outra coisa na minha vida. E eu acho que a coisa certa é a música. É uma coisa espiritual, é uma arte. Eu acho que a gente sobrevive com a arte, a pintura, a dança, o canto. Tem muita coisa na arte que tu abraça e tu esquece do resto. E eu esqueci de tudo.

Eu vivo pra música, meus amigos são todos músicos. E esse clube aqui foi visitado por muita gente. Agora vou ganhar um teclado Roland de presente. Vão levar para mim para eu tocar nos lugares.

LT - Em termos de qualidade de vida, quais os benefícios que a música trouxe para a senhora?

Ivone Pacheco – Pra mim, a música foi meu orgasmo. O orgasmo espiritual é o melhor de todos. A música é tudo para mim, porque foi interrompida. Ela é o meu amor antigo. E eu busquei. Sem querer, ela chegou na minha mão. Sem querer não, foi por intermédio do Marcos. Ele colocou a música na minha vida novamente. Porque eu casei e abandonei tudo. Eu me dediquei só ao marido e aos filhos. E a minha irmã veio de Brasília e me sacudiu e disse, “olha, vai pra rua, vai pro mundo. Tu tá só entocada dentro dessa casa. Isso não é vida”.

LT - A senhora acredita que uma pessoa acima de 60 anos tem condições de começar a tocar um instrumento, mesmo que nunca tenha tocado?

Ivone Pacheco – Depende da vontade, do talento. Tem que ter ouvido, mas também boa vontade. Acho que não tem idade para a pessoa recomeçar. Mas precisa de tempo. Eu praticava três horas por dia, mas alguém de idade mais avançada que vá começar agora, precisa se dedicar mais. O que não pode é, com 60 anos, cruzar os braços e dizer que está muito velho. Porque ele pode chegar a 90 anos. E vai ficar 30 anos fazendo o quê? É isso que eu digo. Eu achava que ia viver até 50 ou 60, e eu já estou com 76. E eu quero chegar aos 90, no mínimo. E a música vai me levar até lá. Pode ser sem uma perna, deitada, sentada. Tocando, eu vou viver.

A música evita o Alzheimer, tu sabia? Dizem que crochê, palavra-cruzada, computador, dizem que todo velho tem que lidar com isso. Eu estou sempre atualizada, vejo televisão, vejo DVD. Mas eu gosto é de filme antigo. Aí tem que procurar, então não estou vendo muito. Mas estar a par do que está acontecendo no mundo, eu acho que tem tempo. Não existe isso de “estou velho”, o que vale é o espírito. É a cabeça estar funcionando e atual. Eu lido com gente jovem, não com velhos. Eu não posso ir para uma geriatria, porque eu quero viver. Eu quero ser útil. E quem tá me ouvindo, diz que o meu estilo está evoluindo ainda.

LT – Muitas pessoas de mais idade reclamam da solidão. A senhora se sente sozinha?

Ivone Pacheco – Eu adoro a “solitude”. É tu ficar contigo mesmo e gostar de estar só. Tu já sentiu isso?

LT – Já. Eu moro sozinho.

Ivone Pacheco – Tu mora sozinho? E tu gosta de ficar sozinho?

LT - Gosto, mas não o tempo todo.

Ivone Pacheco – Eu acho que eu sempre fui assim, mas não podia, né? Existe o momento para tudo acontecer. E a pessoa tem que estar na busca, pois se ela fica parada, ela não encontra nada. Tem um trecho de um livro que eu li, do Jorge Luis Borges. “Caminante, no hay camino / se hace camino al andar” [nota: na verdade, a poesia é de autoria do espanhol Antonio Machado]. Tu tem que sair da tua ostra, para ver o que está acontecendo lá fora. Sem caminhar, eu não seria o que eu sou hoje. Eu toquei em bares, aí começaram a me chamar. Eu dei canjas. Fui caminhando sempre. Eu dei aula no Estado, aquilo era uma prisão, era uma jaula.

LT - A senhora deu aula até se aposentar?

Ivone Pacheco – Sim, com 60 anos. Eu demorei um pouco mais, pois eu tirava licenças para poder me dedicar à música. E eu ganhava mais com a música do que como professora. Mas a gente já está saindo do assunto da entrevista, né? O que interessa é o clube de jazz, as minhas viagens, onde eu toquei. Tu vai selecionar aí pra colocar lá no jornal, né?

***

É neste ponto que a gravação se encerra. Já havia conseguido o que precisava para a minha pauta, mas por mim, passaria o resto da tarde ouvindo as histórias de Ivone, tentando buscar mais detalhes, conectando os pontos e as informações na linha do tempo que ela trazia, de memória, no improviso, como um bom jazz. Ela, naturalmente, já estava cansada, e terminamos por aí.

Fui convidado para a sessão seguinte do clube, que ocorreu em abril de 2009, e pude ver e sentir um pouquinho do clima vivido por aqueles jovens – se não de corpo, definitivamente de alma – desde os anos 80. Hoje, com 86 anos, Ivone ainda participa de sessões do Take Five eventualmente (hoje organizado por sua filha, Rosa Maria Marin Pacheco), apesar dos problemas de saúde. Como ela mesma diz, segue firme rumo aos 90 anos. “A música vai me levar até lá. Tocando, eu vou viver”.


Entrevista original publicada na Revista Panvel Sempre Bem, em janeiro de 2009. A íntegra está sendo publicada pela primeira vez neste site.

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